No atual momento pelo qual passa nossa sociedade, em que o tema da segurança pública e o consequente combate aos altos índices de criminalidade constatados e percebidos por todo cidadão brasileiro na prática cotidiana, muito se tem falado a respeito das “soluções” apresentadas pelo Estado brasileiro, da aplicação do instituto da legítima defesa, do porte e posse de armas, e por aí vai…
Entretanto, esse debate, na maioria das vezes, realizado no “modo polarizado” de hoje em dia, fica restrito apenas a matéria penal. Pouco – ou quase nada – se fala a respeito do direito à autotutela aplicada no âmbito do Direito Civil, garantido inclusive como meio de defesa da posse, objeto deste artigo.
Hoje, principalmente nas civilizações ocidentais, quando existem interesses antagônicos gerando conflitos entre duas ou mais pessoas, no intuito de solucionar o referido conflito, o Estado-juiz tem papel principal na determinação de indicar qual a vontade do ordenamento jurídico para o caso em contento. Resolver conflitos e decidir controvérsias são uns dos fins primordiais do Estado.
É justamente na ineficiência do Estado na resolução dos conflitos, que ganha cada vez mais espaço em nossa sociedade o uso das modalidades de soluções não-jurisdicionais dos conflitos, tratadas como meios alternativos de pacificação social. São nessas modalidades que insere-se a autotutela ou autodefesa na proteção da posse prevista em nosso Código Civil.
As principais formas de autotutela possuem como aspectos basilares o uso da força física, moral ou econômica. Justamente, o que se procura evitar com a figura e imposição do Estado-juiz, e de encontro ao atual Estado Democrático de Direito, em que princípios como o contraditório e a ampla defesa devem ser sempre observados. Sem dúvida é esse um dos motivos pelo qual o exercício da autotutela é uma exceção a regra, tendo seu uso mitigado a alguns poucos e devidamente especificados pelo ordenamento jurídico.
Dessa forma, o nosso ordenamento jurídico prevê diversas situações em que a autotutela pode ser utilizada, como por exemplo, o uso da legítima defesa e do desforço na proteção da posse contra esbulho ou turbação de terceiros.
Passando ao longe da discussão a respeito dos conceitos e diferenciações existentes entre as figuras da posse e de propriedade, fato é que a posse possui autonomia própria, uma vez que o Código Civil vigente prevê mecanismos de defesa que podem ser utilizados por aqueles que possuem o condão de possuidores, independentemente de serem proprietários ou não.
Além das possibilidade de defesa da posse trazidos pelo Código de Processo Civil em seus artigos 560 e 567, o Código Civil determina ainda aquelas baseadas no instituto da autotutela, ou seja, a defesa “com as próprias mãos”, permitindo claramente o uso da legítima defesa (art. 1.210), quando se tratar de ameaça à posse (turbação), e do desforço imediato (§1º do art. 1.210), quando diante da perda da posse (esbulho).
A legítima defesa deve ser aplicada observando-se os mesmos requisitos do art. 25 do Código Penal, que determina: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
Ademais, exige-se que o defensor seja possuidor a qualquer título; a ocorrência de turbação injusta, efetiva e atual; e que haja proporcionalidade na reação apresentada. Agindo dessa forma não há como o possuidor turbado sofrer qualquer penalidade por ter feito uso deste meio de defesa. Obviamente que se agir de maneira desproporcional poderá responder pelos excessos porventura realizados.
Por sua vez, o desforço é mais amplo que a simples defesa, é justamente o esforço na tentativa de recuperar a posse que lhe tem sido arrebatada.
A aplicabilidade do desforço imediato restringe-se às situações em que a posse tenha sido esbulhada, permitindo-se ao prejudicado restituir-se na condição de possuidor, por suas próprias forças, desde que o faça logo. A rapidez imediata no agir é exigida no §1º do art. 1.210 do Código Civil, que descreve ainda que os atos de defesa, ou do desforço, não podem ir além do indispensável à manutenção, ou restituição da posse. Ou seja, o desforço deve observar o lapso temporal e a proporção entre a ação ilícita e a reação do possuidor para receber integralmente a tutela legal.
No caso de ultrapassar o limite do tolerável, seja ele referente ao tempo ou ao modo, que é deve ser medido a partir das circunstâncias concretas vislumbradas em cada caso, o possuidor cometerá ilicitude e ficará sujeito às correspondentes sanções, inclusive indenizando os danos derivados do excesso de defesa, inclusive de ordem moral, se for o caso.
Importante frisar que os requisitos inerentes ao desforço imediato também deverão ser observados na legítima defesa.
Na verdade, apesar dos requisitos serem expostos de maneira clara no §1º do art. 1.210 do Código Civil, na prática, na análise do caso concreto, percebe-se o quanto é difícil delimitar se o possuidor se utilizou de excessos ou ainda se agiu de maneira imediata, principalmente pelo uso da vaga expressão “logo” pelo legislador.
Não podemos esquecer que diante da característica de excepcionalidade da autotutela, os requisitos normatizados pelo ordenamento jurídico deverão ser sempre minuciosamente analisados pelo Estado-juiz, sob pena de gerar na sociedade um desregrado uso das “próprias mãos”, o que por sua vez pode trazer graves conseqüências ao Estado Democrático de Direito.
É bom que se diga que o uso dos mecanismos de autodefesa expostos acima, não impedem a utilização às vias judiciárias. Uma vez não obtido êxito na defesa ou desforço, poderá o possuidor prejudicado se socorrer à ação possessória cabível no caso concreto.
Na verdade, na maioria das vezes os mecanismos de autotutela ou autodefesa estão servindo muito mais para robustecer a instrução probatória nas demais ações possessórias do que propriamente para solucionar efetivamente a turbação ou esbulho, colocando fim ao conflito.
Assim, com a inevitável participação do Estado-juiz na análise dos atos, o instituto da autotutela encontra pouco espaço em nossa sociedade, pelo menos no que se refere à defesa da posse, visto que a autotutela não tem colocado fim ao conflito, apenas transferindo o local da “briga” do imóvel atacado para a Justiça, não perfazendo, na prática, efetivo meio de solução de conflito.
Aluízio Dutra Filho
Advogado